terça-feira, 27 de setembro de 2016

Um presente para a posteridade

Esse é o título do segundo prefácio de Chin Sheng-tan ao Quarto do Oeste. O autor quer ter a certeza de que será lembrado no futuro e diz que a melhor forma de fazer isso é dar um presente. Ou ser um presente. As pessoas do futuro talvez gostem das coisas que ele gosta e a solução é simples:

"Em vista disso, pensei em um jeito: escolher alguma coisa desse mundo que tenha o poder de sobreviver no futuro. Escolher alguma coisa deste mundo que tenha o poder de sobreviver no futuro, mas seja desconhecida ou não plenamente compreendida hoje em dia. Escolher alguma coisa deste mundo que tenha o poder de sobreviver no futuro e seja desconhecida ou não plenamente compreendida hoje em dia, mas que eu possa interpretar e esclarecer com exatidão. Ora, essa coisa que tem o poder de sobreviver no futuro deve ser um livro. Essa alguma coisa que tem o poder de sobreviver no futuro, mas hoje em dia é desconhecida ou não plenamente compreendida hoje em dia deve ser, entre os livros, o Quarto do Oeste com os meus comentários."

Essa imortalidade tomada e emprestada, tomada porque é de uma obra alheia e emprestada porque exaltada por seu comentário, encanta Chin, mas não sem um sorriso maroto. Ele mesmo diz que não sabe se seus comentários concordam ou não com as ideias do autor e, assim, existiriam dois livros, com e sem comentário, e cada pessoa pode escolher o seu. Afinal, sua obrigação, diz ele, não é com o autor antigo, mas com os futuros leitores. São muitas as ideias encantadoras em poucas páginas.




Ano passado, escrevi um pequeno texto para acompanhar o CD da organista uruguaia Cristina Banegas. Um amigo traduziu para o alemão e, hoje, existe um objeto material em que meu nome está associado à obra do Mestre, na língua que ele entenderia. Não sei quanto tempo o CD e o texto terão ainda sobre a Terra, mas a música do Mestre pode levá-los bem longe e, ali, meu nome estará. Chin Sheng-tan aprova essa malandragem.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Sobre a efígie de Nicolau Copérnico

Tu, espírito três vezes sábio! Tu, homem mais que maior!
Contigo a noite dos tempos que a todos assusta não pôde.
Em ti a inveja terrena o senso não atou.
O senso que o novo caminho da Terra descobriu.

Aquele que os velhos sonhos e a escuridão confundiu
E direito nos explicou o que vive e a sua lei.
Então floresça tua glória como se em um carro
pelo círculo em que somos levados em torno do Sol.

Quando o errado com o tempo passar
Teu louvor imóvel com seu Sol permanecerá.

Andreas Gryphius (1616-1664)


Wann diB was irrdisch ist/ wird mit der Zeit vergehn
Soll dein Lob unbewegt mit seiner Sonnen stehen.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

春の雪

Não é difícil perceber que Neve de Primavera, o primeiro romance da tetralogia final de Mishima, publicado entre 1965 e 1969, é um romance ocidental, de evidentes traços ingleses. Se a leitura não tem outra intenção que não a trama de Kiyoaki, Satoko e Honda, o tédio fica à espreita. As convenções da literatura romântica européia já eram soníferas na primeira metade do século XX, no Japão da segunda metade, jovens que morrem de doenças quando apaixonados, cartas secretas, encontros furtivos em passeios proibidos parecem saídos de enredos de filmes pornográficos que pretendem ser sofisticados, os célebres "pornôs com história". Assumindo, contudo, outro ponto de vista, supondo que Mishima está apenas manipulando uma tradição, repetindo clichês como faria um intelectual japonês apenas familiarizado com a literatura ocidental, o que resta dessa neve na Primavera? Suspeito que o propósito final da obra é realçar, de um lado, o caráter obsoleto das paixões ridículas vividas por Kiyoaki. O pai as despreza e rapidamente organiza um aborto expediente para Satoko. Seu amigo Honda aceita com prazer o distanciamento de suas loucuras e ajuda, ao final, como ajudaria uma pessoa doente. De outro, confrontado com a inanidade última dessas paixões, sua completa inutilidade prática, o desperdício de vida que implica, Mishima levemente se pergunta de onde vem tal coisa. Aí sim, leio alguma coisa de original. O romantismo ocidental vive de pobres mitologias rousseaunianas; Mishima começa a refletir sobre esses eventos no contexto dos ciclos do sofrimento e reencarnação do budismo e do hinduísmo. Em Neve, a coisa apenas floreia o texto, mas sabemos que ela será desenvolvida mais à frente. Se a vida é eterna em seus ciclos, nos veremos de novo e o isolamento estóico de Honda será desafiado outras vezes. Podemos morrer, portanto.



terça-feira, 13 de setembro de 2016

Neve de Primavera

Ouvi falar de Yukio Mishima pela primeira vez em um catálogo do finado Círculo do Livro. O folheto, que sugeria compras, elogiava "Confissões de uma Máscara", título que impressiona qualquer um. Não pedi a meu pai para comprar, contudo. Muitos anos depois, vendo televisão de madrugada, comecei a assistir por acaso o filme do Paul Schrader, que me lembro ter sido elogiado em alguma matéria do igualmente finado Jornal do Brasil. Naturalmente, a reportagem mencionava o suicídio trágico de Mishima e o final do filme não seria uma surpresa. O filme, em si mesmo, foi a surpresa (e dela não me recuperei até hoje). Encenando seus grandes livros como peças de teatro, o filme de Schrader quis emular a intensidade passional do autor, produziu cenas memoráveis, como a espada na tela de Delacroix, e reencenou de forma extremamente feliz as circunstâncias de seu suicídio ritual. É um grande filme, cujas cenas tenho a honra de guardar na memória. Mishima, anos depois, entrou em moda por conta de seu homossexualismo e de mais uma onda de japonismo ocidental nos anos 1990. Nada disso me parecia relevante. Queria saber se havia algo de real sob o filme, sobre os assuntos que me interessavam, o espelho japonês do Ocidente, a autenticidade da vida, o confronto entre pena e espada, entre o sol e o aço. Quando um navio americano estacionou na baía de Tóquio em meados dos anos 1850, algo muito estranho e espetacular aconteceu. De alguma forma, esse algo se conecta aos eventos de 1970. Sigo lendo, sigo meditando, sem compreender completamente. Em tudo o que é belo, escreveu o filósofo, existe algo que merece ser sabido.