sábado, 2 de dezembro de 2017

Imagens

Não sei quem é exatamente Jurgis Baltrusaitis e não sei como cheguei a saber de seu Les perspectives dépravées. Anamorphoses (2008). Acho que foi no livro do Fumaroli sobre retórica. É um registro interessante sobre uma ideia relativamente trivial: usar as regras da perspectiva para esconder uma imagem. Ou seja, produzir um ângulo específico (ou um tipo de espelho) onde as imagens seriam corretamente vistas. Fora desse ângulo ou sem esse espelho, apenas imagens distorcidas, como o célebre crânio na tela de Holbein. Baltrusaitis faz uma história dessa moda, a partir do século XVI, e vai revelando até conexões chinesas. Em um mundo de realidade virtual e CGI, anamorfoses são mais que obsoletas. Ainda assim, é a velha pergunta barroca: o que estou vendo é real? O que afinal estou vendo?

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

rifatto sì, come pianta novelle

Completei esse ano a terceira leitura da Commedia, acho até que escrevi sobre o fato nas Reflexões. Saí convencido de que o livro mais brilhante é o Purgatório, quando o Poeta fica face a face com o drama da punição. No Inferno, as penas são diretas e incontroversas; no Purgatório, sua Justiça não é tão evidente. Dante vive momentos de transição, de Virgílio a Beatriz. Fica claro que sua viagem não é meramente turística, nem teológica. Algo está acontecendo com ele e, de fato, seu nome, na voz de Beatriz, aparece no poema. Por isso, mandei vir o livro, relativamente famoso na comunidade de estudos dantescos, de Francis Ferguson, Dante´s Drama of the Mind. A Modern Reading of the Purgatorio (Princeton, 1953).

Entrega bem menos do que promete. As idéias interessantes estão nas linhas acima e Ferguson tem o mérito de identificá-las com elegância e pertinácia. Se você espera uma forma de "melhores momentos" de sua poesia, como no ensaio de Borges, não vai encontrar. No final, para chatear o leitor, vem as comparações do Brande-Lança, uma obsessão de autores anglo saxões. Parece que não conseguem conviver com o mérito genuíno de Dante e Cervantes. Chega a ser embaraçoso e é melhor saltar essas partes. O parágrafo sobre o Paraíso Terrestre é particularmente frustrante.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Gabinete de Maravilhas

A coletânea foi publicada em 2013 pelas professoras Lavinia Michero e Martina Mazzota, com um título em italiano e alemão, Wunderkammer. Arte, Natura, Meraviglia, ieri e oggi. É menos ambicioso do que parece e tem mais imagens do que texto. Na verdade, as figuras importantes da coletânea são dois italianos, Ulisse Aldrovandi e Manfredo Settala, organizadores de alguns museus de maravilhas. Há uma teoria interessante por trás dos gabinetes: o conhecimento seria revelado por objetos excepcionais. Uma coleção de objetos excepcionais deveria produzir ciência. Sabemos que não é assim que funciona e as coleções logo se dedicaram ao bizarro ou ao precioso. Ao final do século XVIII, a ciência moderna acabou condenando os gabinetes de maravilha ao mundo do bizarro e dos amadores. Poucos sobreviveram, apenas os objetos com algum valor intrínseco terminaram preservados. As versões modernas são apenas curiosidades.

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Jacopo Barozzi, dito o Vignola

O título do livro do Bruno Adorni (Skira, 2008) nem chega a tal detalhe, dizendo apenas o nome com sua cidade: Jacopo Barozzi da Vignola. Não é uma obra erudita, mas um resumo belamente ilustrado da erudição que se acumula em torno do arquiteto da villa em Caprarola e de tantas outras obras excepcionais. Sou, como já registrei nas duas versões desse blog, obcecado com uma de suas criações, a Villa Giulia, atual Museu Etrusco. O ninfeu é do Ammanati, mas o prédio côncavo, com suas colunas inteligentes é criação de sua mente. Adorni registra que, ao final de sua carreira, as relações com os Farnese e seu próprio êxito profissional se transformaram em obstáculo: suas soluções eram límpidas e irrefutáveis, quando os comitentes já procuravam o obscuro e o polêmico. Restou, contudo, seu domínio de uma linguagem omnipresente: as Regras, hoje visíveis em prédios por todo o planeta. Em suas cartas, vemos um homem honesto, trabalhador, discreto e capaz de encarar a ingratidão com bonomia. No meio de tantos gênios turbulentos, alguém que levava Euclides para o mundo material.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Uma notável coleção de objetos

Terminei o segundo volume do Quarto Vermelho ainda nas férias, no mar do Ceará. O próprio tradutor avisa que é o volume das coisas belas, em que Xuequin se diverte descrevendo roupas, móveis, jóias e mesmo objetos de cozinha. São meras superfícies, contudo. Suas páginas vão insinuando, aqui e ali, que o fim está próximo, apesar dos concursos de poesia, das visitas de parentes vindos do Sul e dos donativos imperiais. Jia She informa o leitor que o dinheiro está acabando ou que vai acabar em algum momento, enquanto a matriarca ordena festas e jardins.

Acho que jamais esquecerei a descrição da festa do Ano Novo, quando, em ondas, por gerações, todos vão se curvando diante da Senhora Jia, uma exibição de piedade filial confuciana e de tradições manchus. O tempo está passando, é ano novo.

Q

O título da coletânea organizada pelos professores Jean Michel Salanskis (pesquisador do CNRS) e Hourya Sinaceur (diretora de pesquisa no CNRS) é bem adequado: Le Labyrithe du Continu (Springer-Verlag, Paris, 1992). Poucas idéias são, para mim, mais perturbadoras do que a reta dos números reais. Seus paradoxos são conhecidos há mais de um século, mas a pergunta "qual o primeiro número maior que 1?" me fascina.

Ontem ia lendo um artigo sobre Leibniz, na verdade, sobre a notação que Leibniz sugere para o tratamento matemático do infinito. ("Leibniz´ Principle and Omega Calculus", D. Laugwitz, professor em Darmstadt). O artigo é menos interessante do que a sugestão de Leibniz: o infinito e o infinitesimal são apenas ficções convenientes. Podem ser substituídos por quantidades definidas para se obter a precisão que se desejar no cálculo. É evidente que a "precisão que se desejar" não parece filosoficamente sólida, mas o argumento é poderoso: "se alguém duvida de seus resultados, deve dar um exemplo".

Por isso sigo achando que a reta dos reais é um fonte inesgotável de idéias.

quinta-feira, 11 de maio de 2017

O quarto vermelho

Agora lendo a versão completa, na tradução genial de David Hawkes, só me resta repetir o que escrevi em 2009:

"Não é uma viagem curta, duas horas e quinze, e consumiu facilmente o capítulo VII de The Classic Chinese Novel, do professor C.T Hsia. Seu texto, brilhante em vários momentos, trata do Sonho do Quarto Vermelho (Hung-lou meng), publicado originalmente em 1792. O autor é Tsao Hsueh-Chim, mas já sabemos que sua real autoria jamais será conhecida e é provável que a extensão atual e parte dos capítulos finais seja obra dos editores. Fosse Chin Sheng'tan vivo, o Sonho seria ainda melhor e mais ajustado. Notas anteriores desse blog registram que já tentei ler o Sonho, sendo interrompido pelo tédio natural provocado por desventuras de amor. 

O professor C. T. Hsia mostra, contudo, que essas desventuras, festas, romances e outras trivialidades sociais da grande mansão senhorial do Yungkuofu não podem ser entendidas senão à luz do que não se mostra. A realidade da política imperial, onde toda riqueza é incerta e toda posição superior pode comprometer a honra. A realidade das políticas matrimoniais, onde o amor é inútil e a sensibilidade um risco. Durante um tempo, as jovens sonham com o amor, os jovens sonham em ser sensíveis. Elas querem se divertir, eles não querem crescer. É como em Brasília. 

O relógio da vida, contudo, segue batendo. Uma hora, virão os concursos para o serviço do Imperador; uma hora virão os casamentos arranjados ou a posição de concubina. Então os jovens vêem que os velhos apenas os pascem como gado, os divertem por um tempo, os deixam brincar na proteção de um jardim. Tsao Hseuh-Chin, contudo, não está interessado em escrever um romance de formação. As moças ficam doentes de amor, os jovens são empurrados para a perda do caráter, para a insensibilidade. Algumas morrem, outras viram freiras, outros se embrutecem no Tao. Tudo se desfaz, como um sonho no quarto vermelho. Fica um gosto ruim na boca."

domingo, 23 de abril de 2017

Peacock room

Dentre as coisas que me causam maravilha, a Sala do Pavão, no museu Freer, tem um lugar especial. Fui pesquisar o assunto e descobri que Charles Lang Freer (1854-1919) e James McNeill Whistler (1834-1903) mantiveram uma bela amizade, apesar da distância em anos e condição social. Freer era já o magnata dos carros de trem quando conheceu o pintor e logo se dedicaria apenas à sua fortuna e sua coleção de arte. As cartas que ambos trocaram foram publicadas em 1995: With Kindest Regards (1890-1903), editadas por Linda Merrill, em uma publicação do Smithsonian. Freer tinha legítimo entusiasmo com a arte de Whistler, mas a correspondência entre os dois tem algo de comercial, cauteloso e meio distante. O pintor tinha fama de temperamental e Freer, por seu lado, era uma pessoa reservada.

A Introdução acaba preenchendo os espaços vazios deixados pelas cartas. Tecnicamente, para os padrões do século XIX, Whistler estava em seus últimos anos e Freer começava a aproveitar seu tempo e dinheiro. A amizade em torno da obra era o real conteúdo dessa relação respeitosa e também interessada. Na história da arte, um evento raro.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Dois motivos

Sensacional. Há duas razões para não atribuir significados substantivos a resultados eleitorais. A primeira é clássica, iluminista: todo procedimento de votação é artificial e incapaz de refletir a diversidade de preferências. Está na raiz de processos de votação. Não tem como mudar e ainda é agravado pelo teorema de Arrow. A segunda é operacional: toda votação, em alguma medida, é manipulável ou manipulada. Reflete comportamento estratégico de eleitores e candidatos. Por isso, eleição é apenas uma eleição. Não quer dizer mais do que isso. Ah, o livro é de 1988.




terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Poetas menores

Poetae Minores é uma coletânea editada e traduzida pelo professor Ernest Raynaud e publicada pela Garnier em Paris em 1931. Está há tanto tempo em minha biblioteca que nem tem data e assinatura na contra capa. Deve ter chegado ao Rio de Janeiro nos anos 1950, para alguma biblioteca de gente com dinheiro e suas folhas ainda estão coladas depois da página 100. Não foi lido além desse ponto e deve ter sido vendido a um sebo nos anos 1980, onde o comprei. O livro vai fazer cem anos em pouco tempo e alimenta minha curiosidade. Leio, no correr dos anos, um poema aqui, outro ali. Os versos raramente são felizes. São poetas menores, literatos de corte, convencionais ou rebuscados. Vez por outra, uma fórmula feliz, como a dos poemas de Spurina ou Servastus, que reservo para um uso futuro, ou o curioso poema de Eucheria, ironizando um pretendente, no século V ou VI. Já tinha grande carinho por esse livro quando li o poema de Borges:

Poeta Menor


A meta é o olvido
Ele chegou antes.


Pós escrito. Os versos de Spurina, um político sério, mencionado por Plínio, o Jovem, tratam da renúncia à vida ativa: Nos sero pelagus vicimus invium/ Quidquid viximus, interit. O mero domínio do português permite intuir seu significado e sua contenção. A tradução do professor Raynaud, contudo, é prosaica.