domingo, 27 de novembro de 2016

Mais esfera

O estudo das conjunções de planetas prossegue, sempre com uma preocupação bem prática, afinal que scientia est multum utilis multis, si esset in promptu, ut medicis, physicis et cyriurgicis, marinariis, mercatoribus, etc.; eo quod bona dispositio lune significat bonam disposititionem temporis, et fortuna multorum, quia reddit naturaliter diem laudabilem, et bonum significat super dispositionem fortune multorum. E, sobretudo, sanitas lune est sanitas omnis rei. Um capítulo seguinte trata do apogeu e do perigeu dos corpos celetes e, afinal, chega a hora de tratar do movimento retrógrado dos planetas.

Pensava que seria o único embaraço para uma visão de mundo composta por movimentos circulares e constantes, mas há outros embaraços: a variação no diâmetro aparente do Sol ao longo do dia, mais difícil ainda de explicar. Bartolomeu invoca "vapores da terra e da água", que se acumulam na esfera terrestre e atrapalham a visão do Sol ao meio dia, e compara com a visão submarina das coisas, quando aliquis est sub aqua maris cum oculis apertis. Como nota o Barbour, a existência do movimento retrógrado causa embaraço, mas nenhum autor medieval sequer tentou explicar o fenômeno. Por fim, vem o exame dos climas da Terra, ou seja, de sua divisão em meridianos e círculos. Bartolomeu sabe, evidentemente, que existe um outro hemisfério, mas nec possint ire per viam nature, quod negatur causa zona perhuste, scilicet tanti caloris qui circundat eam per totum.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Exercício de irracionalidade

Tal como no caso do Quixote, primeiro você ri, depois, chora. De um ponto de vista brasileiro, a história de Perón é quase inconcebível. A transformação de uma, digamos, atriz em primeira dama e co-governante já seria bizarra. As vicissitudes de seu cadáver embalsamado desafiam uma explicação racional. Em 1954, Vargas se suicidou por causa de uma crise aguçada por um mero assassinato político que não se consumou; em 1955, a Força Aérea Argentina bombardeou a Praça de Maio e a Casa Rosada, matando mais de 200 pessoas. Crime jamais apurado. O regime militar brasileiro, em duas décadas, não assassinou 200 pessoas.

Nos seus últimos anos, Perón desfilava pelos salões elegantes de Buenos Aires com uma amante de 15 anos. No Brasil, isso seria inconcebível, apesar da fama do país. Perón ordenou a prisão de bispos! Bom, não falamos das relações com o nazismo, da corrupção quase inacreditável (Perón quase privatizou o comércio internacional de commodities da Argentina). Em suma, visto de Buenos Aires, o populismo brasileiro pode ser considerado um exercício de racionalidade. O Varguismo é apenas um assunto para historiadores; o Peronismo ocupa, nesse momento, a Praça de Maio.



O livro de Horacio Vázquez-Rial é de 2004.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Dynamics

Comprei antes de ler a resenha ambígua do Lubos e, de fato, examinando bem, não há muita coisa nova no livro. Alguns detalhes técnicos do Almagesto eu já não me recordava, como o equante, e é evidente que a visão de um universo onde a Terra está no centro de tudo não fazia muito sentido desde a época de sua publicação. As consequências desse fato é que, curiosamente, não mereciam maior estudo. Aprendi duas coisas. A primeira é a real relevância da obra de Kepler, que vai muito além da descoberta das leis empíricas do movimento dos planetas. Já está ali uma intuição da natureza da gravitação e também do Cálculo. A segunda é que, ao contrário de Newton, Descartes e Huygens viram bem claramente que todo movimento é relativo. Viram, mas não escreveram com a ênfase devida por razões bem conhecidas. A relatividade de Galileu fica muito bem nessa foto.

"However, the main conclusion to be drawn from the two and half millenia that this volume has covered can already be stated: the dynamical frame of reference, and not the ground under our feet or a sphere of fixed stars in the heavens, is the true backbone of the world."

 Julian Barbour, The Discovery of Dynamics, CUP, 2001.





segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Tratado da Esfera

Há tempos devia a mim mesmo uma leitura completa de um tratado da esfera. Como se sabe, são textos medievais que misturam um pouco de astronomia, um pouco de geografia, bem pouca matemática e mitologias de todo o tipo. É singular que raramente apresentem alguma evidência de um estudo empírico do céu ou do planeta. Quase sempre é um gigantesco acúmulo de informações livrescas e duvido que seus autores realmente dominassem a matemática do Almagesto. De todo modo, os tratados da esfera são um exemplo precioso de pessoas buscando entender de forma rudimentar uma realidade de grande complexidade e sua leitura ensina muito sobre as estratégias intelectuais envolvidas nesse processo. Elas não mudam muito com o passar do tempo. Como você pode, afinal, parecer que entende algo que você não entende?

O latim do Tratado da Esfera de Bartolomeu de Parma, um astrônomo e professor em Bolonha, traz a marca do ano de redação, 1299, e é transparente como o italiano. O texto é cortesia do Bullettino do príncipe Boncompagni, um amigo dos tempos da Biblioteca Nacional, que guarda várias de suas obras.

O Tratado é uma obra curiosa, pois mistura elementos da astrologia e da teologia cristã com elementos que hoje diríamos científicos, ao menos para os tempos. Há observações divertidas:

"Et a vera forma spere circulus factus in terra est tante virtutis, quod demones convocati ad circulum per aliquam fortem coniurationem, non sunt ausi introire si sint extra, nec exire si sunt intra".

Descreve também de forma canônica os círculos polares, os trópicos e o equador, com os graus herdados da Antiguidade. Reflete sobre a temperatura relativa e faz mesmo uma menção à Índia, que não era mais possível ignorar. O peso da astrologia aumenta com o passar das páginas e a imagem do homem reflete a imagem do céu. Bartolomeu não teme escrever:

"Tangere membrum ferro frigido vel calido, luna existente in signo illius membri, periculosum est et timendumm vel sapienter precavendum".

Não falta certa poesia ao capítulo sobre a Via Láctea (De circulo spere qui dicitur gallaxia). Vamos lendo, portanto.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Determinado em nossas mentes

No parágrafo 13 da Segunda Parte dos Princípios da Filosofia, Descartes conclui:

"Finalmente, se pensamos que nenhum ponto sem movimento desta natureza pode ser encontrado no Universo, como, em seguida, mostraremos ser provável, então haveremos de concluir que nada tem um lugar fixo, a não ser aquele que é determinado em nossas mentes".

"inde concludemus, nullun esse permanentem ullius rei locum, nisi quatenus a cogitatione nostra determinatur."

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Os mesmos efeitos

"Le Protestantisme a mis la France à deux doigts de la ruine. L´État Monarchique contraint trop l´esprit d´independence que la Reforme inspire, & qu´elle cherche à se procurer même para la révolte dont elle a fait un de ses dogmes. Tant que cette pernicieuse doctrine fera partie de leur profession de foi, les Protestants seront de sujets dangereux; car pourquoi les mêmes principes ne produiroient-ils pas les mêmes effets?"

Abade Henri Maurice Loisson, Suplemento aos Erros de Voltaire, 1779, pág 78.